O Direito de Defesa na Constituição Federal e no Código Penal: A Última Fronteira da Liberdade Humana

Publicado em: 05/09/2025 21:109,1 Min. de Leitura

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Dr Herbert Alencar Cunha - Presidente da Comissão de Defesa da Criança e Adolescente OAB/DF

Dr Herbert Alencar Cunha – Presidente da Comissão de Defesa da Criança e Adolescente OAB/DF

Introdução:

A Constituição Federal de 1988, conhecida como Constituição Cidadã, erigiu a dignidade da pessoa humana como fundamento da República (art. 1º, III) e consagrou, em seu artigo 5º, um extenso rol de direitos e garantias fundamentais. Dentre eles, destaca-se o direito à ampla defesa e ao contraditório (inciso LV), que não se restringe ao campo processual, mas encontra eco no plano existencial: O direito de resistir a agressões injustas, ainda que perpetradas pelo poder público. Essa prerrogativa, muitas vezes interpretada de forma tímida, é na verdade expressão de um direito natural positivado no ordenamento jurídico brasileiro, cujo reflexo mais nítido está no instituto da legítima defesa (art. 25 do Código Penal), norma que deve ser lida em harmonia com o artigo 121 do mesmo diploma, que tipifica o homicídio, mas admite hipóteses de exclusão de ilicitude. O presente artigo propõe uma reflexão crítica sobre a amplitude desse direito, à luz da Constituição Federal, do Código Penal e de normas internacionais, demonstrando que a defesa da própria vida e liberdade não é um privilégio, mas uma necessidade intrínseca ao Estado Democrático de Direito.

      1. A Consagração Constitucional do Direito de Defesa

O artigo 5º da Constituição estabelece que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” (inciso LIV), assegurando ainda a ampla defesa e o contraditório (inciso LV). Entretanto, essa garantia não se esgota na esfera processual; ela se projeta para o plano material, traduzindo-se no direito de o indivíduo não se curvar à injusta agressão, qualquer que seja sua origem. A história constitucional revela que a resistência à opressão é princípio universal. A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, no artigo 2º, já enunciava: “A finalidade de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão.” Portanto, em um Estado Democrático, o direito de defesa não pode ser interpretado de forma restritiva, mas sim como expressão maior da liberdade, sobretudo diante de eventuais abusos do poder estatal.

  1. O Código Penal e a Legítima Defesa: A Exclusão da Ilicitude

O artigo 121 do Código Penal tipifica o homicídio, prevendo severas sanções. Contudo, ao lado dessa previsão, o legislador reconhece a legítima defesa como causa excludente da ilicitude (art. 25), dispondo: “Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.” Esse dispositivo consagra uma norma de proteção, não de violência. Ele não estimula o confronto, mas reconhece que a vida não pode ser sacrificada no altar da submissão. Quando a agressão parte do próprio Estado, por meio de atos arbitrários, resta claro que a norma penal não pode servir de escudo para a tirania. O Princípio da Proporcionalidade e o Princípio da Intervenção Mínima do Direito Penal reforçam essa compreensão: ninguém é obrigado a se deixar matar, humilhar ou submeter injustamente para preservar a legalidade abstrata.

  1. Normas Internacionais e o Direito à Vida

O Brasil, ao ratificar o Pacto de San José da Costa Rica, incorporou ao seu ordenamento jurídico normas que reconhecem a inviolabilidade da vida (art. 4º) e as garantias judiciais (art. 8º). Contudo, tais direitos não são absolutos para o agressor: não se pode invocar o direito à vida para justificar a continuidade de uma agressão injusta. Nesse sentido, a legítima defesa é instituto de equilíbrio, que impede a prevalência da força sobre a justiça, reafirmando o caráter protetivo do Direito.

  1. Reflexão Filosófico-Jurídica: Defesa como Limite ao Poder

A filosofia política ensina que o contrato social não é pacto de submissão irrestrita, mas acordo destinado à proteção da liberdade e da vida. Quando o poder se desvia dessa finalidade, ressurge o direito de resistência. Não se trata de incitar a anarquia, mas de reafirmar que a obediência cessa onde começa a tirania. O Estado que não reconhece esse limite deixa de ser Estado de Direito para se converter em mera estrutura de poder arbitrário.

Como bem ponderou Rui Barbosa: “A força do direito deve superar o direito da força.”

  1. O Direito de Defesa em Contextos de Países Socialistas: Uma Análise Comparativa

A compreensão do direito de defesa e da resistência à opressão, tal como postulada na tradição liberal ocidental e refletida no ordenamento jurídico brasileiro, encontra nuances distintas em países com sistemas jurídicos e políticos de orientação socialista. Nesses contextos, a primazia da coletividade e a defesa do Estado socialista moldam as prerrogativas individuais.

Em países como o Vietnã, por exemplo, o Código Penal reconhece a figura da “circunstância urgente” (análoga à legítima defesa), que exime de responsabilidade penal aqueles que, sem alternativas, causam dano menor para afastar um perigo iminente aos interesses do Estado, organizações, ou direitos e interesses legítimos próprios ou de terceiros. O Código de Processo Penal e o Código Penal vietnamita explicitam o objetivo de proteger o regime socialista, os interesses do Estado, os direitos humanos e de cidadania, a igualdade étnica, e a ordem legal, visando a prevenção e combate ao crime.

Na China, a Constituição da República Popular da China de 1982, com suas revisões, atribui às forças armadas o dever de “fortalecer a defesa nacional, resistir às agressões, defender a Mãe-Pátria”. Embora a Constituição garanta direitos e deveres fundamentais aos cidadãos, como a liberdade de expressão e reunião (Artigo 35), a estrutura jurídica é permeada pela centralidade do Partido Comunista Chinês. No cenário internacional, a China tem defendido o direito de povos à legítima defesa e à resistência contra ocupação estrangeira, distinguindo essa luta legítima de atos de terrorismo, como demonstrado em sua posição perante a Corte Internacional de Justiça sobre a Palestina. Isso sugere uma aceitação do direito de resistência em face de agressões externas ou coloniais, embora a aplicação desse conceito a cidadãos contra o próprio Estado seja interpretada sob o prisma da defesa da ordem socialista.

Cuba apresenta uma perspectiva interessante na sua Constituição de 2019. Além de reafirmar o caráter socialista do Estado, o Artigo 4º da Carta Magna cubana estabelece um “direito de combate” dos cidadãos: “Os cidadãos têm o direito de combater por todos os meios, incluindo a luta armada, quando não for possível outro recurso, contra qualquer um que tente derrubar a ordem política, social e econômica estabelecida por esta Constituição”. Essa previsão legal expressa um direito de resistência, mas em sentido inverso ao da tradição liberal; ou seja, é um direito de resistência em defesa do sistema socialista estabelecido, e não contra ele. A inclusão do conceito de “Estado Socialista de Direito”, adotado também do Vietnã, visa reforçar o império da lei e a supremacia constitucional, representando uma evolução na teoria jurídica socialista que, historicamente, por vezes via o “Estado de Direito” como um conceito burguês.

De forma mais ampla, a teoria jurídica socialista, influenciada por Marxismo Leninismo, historicamente concebeu o Estado como um instrumento de opressão de classe, mas também visava a proteção dos direitos pessoais e da propriedade de cada membro da sociedade socialista, ao mesmo tempo que defendia o fortalecimento do poder estatal para enfrentar “remanescentes das classes moribundas” e organizar a defesa contra o “cerco capitalista”. Embora os direitos sociais sejam amplamente reconhecidos e garantidos, a liberdade individual é frequentemente interpretada dentro do quadro dos interesses e da estabilidade do coletivo e do Estado. Em suma, enquanto a Constituição Federal brasileira, no contexto de um Estado Democrático de Direito, enaltece o direito de defesa como uma prerrogativa individual inalienável, inclusive contra abusos estatais, os sistemas jurídicos socialistas, embora reconheçam formas de legítima defesa e, em alguns casos, um direito de resistência, tendem a enquadrá-los na defesa da ordem social e estatal estabelecida, ou na resistência a ameaças externas. A “última fronteira da liberdade humana” assume, assim, contornos e destinatários distintos a depender do paradigma político-jurídico adotado.

  1. Conclusão

O direito de defesa é expressão da dignidade humana e última fronteira da liberdade. Ele encontra respaldo na Constituição, no Código Penal e em tratados internacionais, afirmando que ninguém é obrigado a perecer diante da injustiça, ainda que praticada pelo poder constituído. O artigo 121 do Código Penal, quando interpretado em consonância com o artigo 25, revela que a lei não impõe sacrifício heroico à vítima, mas legitima sua reação proporcional e necessária. Assim, a legítima defesa não é concessão do Estado, mas direito natural reconhecido pelo ordenamento jurídico, assegurando que a justiça prevaleça sobre a opressão. Referências Normativas

  • Constituição Federal de 1988, art. 1º, III; art. 5º, incisos XXXV, XXXVIII, LIV, LV.
  • Código Penal Brasileiro, art’s. 23, II; 25; 121.
  • Pacto de San José da Costa Rica, art’s. 4º e 8º.
Dr. Herbert Alencar Cunha

Dr. Herbert Alencar Cunha

Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), art. 2º. Artigo escrito por Dr. Herbert Alencar Cunha. Advogado: sênior do escritório de advocacia Herbert Alencar & Advogados Associados. Bacharel em Direito pela UNIEURO, pós-graduações pela ATAME, Professor em ensino Superior: Recuperação Judicial, Pós-graduado em Direito ESMA/TJDFT, Direito Constitucional, Pós-graduado em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho, Pós-graduado em Direito Previdenciário, Direito Previdenciário com ênfase em processo do trabalho, especialista em Direito Eleitoral/ESA OAB-DF, ECA-Estatuto da Criança, Adolescente e Juventude, especialista em direito penal, atuação ampla em tribunal do júri. Mestrando em Relações de consumo pela UNB – Universidade de Brasília. Entre outras especializações.

Publicado em Setembro de 2025

Dr. Herbert Alencar Cunha

Veja aqui: Artigo Dr. Herbert Alencar Cunha

Fonte: Informando e Detonando