Por Joaquim Pedro de Medeiros Rodrigues
Os acontecimentos deste início de 2021 despertam aspectos importantes da democracia, em especial seus impactos decorrentes das novas tecnologias. O regime democrático é um projeto de sociedade em constante evolução, que compreende entender a fragilidade desse sistema, inclusive quando diante de concepções populistas e autoritárias. Aliás, mesmo posições ambíguas ou contraditórias são comuns em sociedades não democráticas, como se vê em nações que levam o povo ou a democracia no próprio nome do país. Como exemplos, a República Popular da China e a República Popular Democrática da Coreia.
Pensamentos intolerantes ou extremistas são inevitáveis na democracia, que aceita e espera a existência de uma infinidade de percepções sobre o mundo. O limite da aceitação dos discursos extremistas, no caso de nações democráticas, é a vontade popular expressa pela lei. Não por outra razão, a democracia emerge dentro de um Estado de Direito, que se curva ao império das leis.
Justamente em razão disso, os indivíduos têm a liberdade de exprimir seus valores e ideias, que, não entrando em confronto com a lei, não sofrerão qualquer intervenção do Estado. Caso contrário, poderão sofrer os juízos de intervenção. A Constituição da República, nesse sentido, expressamente consigna que não haverá censura prévia, pois a liberdade de manifestação é valor fundamental para a democracia. Entretanto, violando a lei, poderão, por meio da Justiça, ser impostos limites ou até mesmo sanções no âmbito civil ou no criminal.
É paradoxal, portanto, que a democracia tenha de conviver com pensamentos autoritários, cabendo ao império da lei limitá-los ou até mesmo, se for o caso, impor punições. O mesmo paradoxo parece existir quando se diz sobre a fragilidade da democracia, mas estando ela devidamente fundamentada em um Estado de Direito, ela se impõe de modo coercitivo sobre todos. Nesse sentido, Norberto Bobbio já explicou que a mesma justificativa da violência pelos grupos revolucionários é usada pelo Estado para praticar a sua própria violência [1].
A própria existência do sistema eleitoral indica que a democracia é um projeto de poder contraditório; e é essa contradição que a faz saudável e plenamente capaz, pelo menos nos últimos séculos, de atender satisfatoriamente a sociedade.
A evolução da sociedade nas últimas décadas, entretanto, levou até as últimas consequências os testes de sobrevivência da democracia nas nações ocidentais. Hoje, a liberdade de manifestação ocorre de modo instantâneo a milhões, ou mesmo bilhões, de indivíduos, e em quantidade nunca vista na história.
Assim, o tempo de resposta da sociedade no caso de manifestações extremistas, falsas ou autoritárias, não corresponde ao tempo que essas mensagens levam para por em xeque as instituições democráticas. Em pouco tempo, é possível organizar atos contra pessoas ou governos antes que eles se preparem para as consequências de tais atos.
As redes sociais, assim, têm relevante papel nesse jogo na medida que o ambiente virtual se tornou o principal palco no qual surgem esses debates para, em seguida, se transformarem em ações na vida real. As regras de accountability das redes, portanto, precisam ser claras e voltadas à democracia, inclusive preservando opiniões contraditórias ao regime democrático. E aqui não se pode esquecer as advertências de Zygmunt Bauman em razão dos perigos de uma vigilância ininterrupta e incontrolável [2].
Aliás, é inegável que grandes empresas de tecnologias detêm o controle das principais redes sociais por onde passam toda sorte de informações, o que aumenta exponencialmente a responsabilidade delas.
O desafio que se põe é como gerir essas informações, dentro do ambiente corporativo das empresas de tecnologia, sem minar a democracia, e permitindo que grupos majoritários ou minoritários possam exprimir suas opiniões. O grau de responsabilidade das empresas de tecnologia, de fato, se eleva, e faz supor que medidas preventivas tendem a ser um caminho natural, como a exclusão de contas ou perfis.
É importante ressaltar que a censura prévia não parece se ajustar ao Estado de Direito, pois, conforme mencionado, apenas posteriormente é que as ações são objeto de escrutínio pelas autoridades competentes. Ainda assim, existem exceções bastante específicas, como a legislação de combate ao terrorismo, que, por sua vez, permite a punição de atos preparatórios.
A recente exclusão da conta de rede social do atual mandatário dos Estados Unidos faz emergir o tema e sua importância precisa ser discutida pela sociedade. Regras transparentes e decisões justificadas parecem ser um caminho, mas não esgotam a necessidade de a sociedade ter o controle sobre o debate, e não ficar a reboque de decisões unilaterais.
[1] BOBBIO, N. As ideologias e o poder em crise. Editora Universidade de Brasília: Brasília, 1999, p. 95.
[2] Como leitura, recomenda-se Vigilância Líquida, da editora Zahar, publicado em 2013.
Fonte: Consultor Jurídico