A prisão do ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro esquentou os bastidores da política nas últimas três semanas, principalmente depois de revelado que Mauro Cid pagava as contas pessoais de Michelle Bolsonaro. A polícia considerou suspeita a movimentação financeira e viu indícios de desvio de recursos públicos no fato de o coronel usar dinheiro vivo para custear despesas como cabeleireiro, gastos médicos e roupas. Por determinação do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, os celulares do militar também foram apreendidos.
Os investigadores acreditam que da perícia nos aparelhos poderão emergir novas revelações. Na terça-feira (16), o ex-presidente prestou mais um depoimento à PF, o terceiro nos últimos dois meses. Ele foi interrogado sobre a falsificação de seu cartão de vacinação. Disse, em resumo, que não sabia da fraude, reafirmou que não tomou a vacina e, portanto, não haveria motivo algum para emitir um certificado atestando o contrário.
No dia seguinte, Bolsonaro recebeu VEJA em sua nova residência, localizada num condomínio distante cerca de 15 quilômetros do centro de Brasília. Estava acompanhado da ex-primeira-dama e munido de uma pilha de documentos, recibos, boletos e cópias de extratos bancários que, segundo Michelle Bolsonaro, mostram que Cid, de fato, pagava as despesas dela, mas o dinheiro usado na operação saia da conta pessoal do então presidente. “Não há nenhum tostão de dinheiro público ou de qualquer outro lugar”, diz ela. O casal se considera alvo de perseguição. Na linha de raciocínio deles, o cerco ao ex-ajudante de ordens seria uma tentativa de envolver o ex-presidente em alguma situação constrangedora. Bolsonaro ressalta que antes de deixar o governo já havia sido advertido sobre a possibilidade de prisão. “Para ter um motivo que justificasse isso, eu precisaria ter feito pelo menos 10% do que ele fez. E eu fiz 0%”, acrescenta. O “ele” a quem Bolsonaro se refere é o presidente Lula “uma figura senil e ultrapassada”. O ex-capitão se recusa a pronunciar o nome do atual presidente.
A seguir os principais trechos:
O senhor prestou o terceiro depoimento à Polícia Federal nos últimos dois meses. Isso não é constrangedor para um ex-presidente?
O pessoal está vindo para cima de mim com lupa. Eu esperava perseguição, mas não dessa maneira. Na terça-feira, nem tinha deixado o prédio da PF ainda e a cópia do meu depoimento já estava na televisão. É um esculacho. Todo o meu entorno é monitorado desde 2021. Quebraram os sigilos do coronel Cid para quê? Para chegar a mim.
As evidências de que seu ex-ajudante de ordens falsificou certificados de vacinação parecem bem nítidas.
Ao que tudo indica alguém fez besteira. Não estou batendo o martelo. Da minha parte não tem problema nenhum. Eu não precisava de vacina para entrar nos EUA. A minha filha também não precisava de nada. Estão investigando essas fraudes de 2022, tudo bem.
Alguém entrou no sistema usando o endereço “lula@gmail” para falsificar meu cartão de vacina. O cara pode ser ligado ao PT. Por que não estão investigando? São parciais, na verdade.
A relação do senhor com o ex-ajudante de ordens era, ao que parece, de muita proximidade?
Quem indicou o Cid foi o comando do Exército da época, mas ele me serviu muito bem. Nunca tive nenhum motivo para desconfiar dele, e não quero acusá-lo de nada. Eu tenho um carinho muito especial por ele. É filho de um general da minha turma, considero um filho.
Quais eram exatamente as atribuições dele no governo?
Ele atendia o telefone, às vezes um parlamentar, organizava algumas missões que eu dava. Também ficava com ele o meu cartão do Banco do Brasil. Ele movimentava minhas contas, pagava as contas da Michelle, mas não participava das decisões do governo, não interferia, não era, como alguns acham, um conselheiro.
Agora, com todo o respeito, quebrar o sigilo de mensagens de um ajudante de ordens do presidente da República é… Vai se ter acesso a 90% da rotina do presidente e também de alguns ministros.
Existe a chance de aparecer algo comprometedor?
Quando se fala em comprometedor, as pessoas pensam logo em dinheiro, em alguma coisa ilícita. Zero, zero. Isso não vai ter. Agora, tem troca de “zaps”, em linguagem de “zap”, tem palavrão. Há certamente conversas que envolvem segredos de estado. Vazar isso, como tem sido feito, é muito grave.
A investigação encontrou diálogos de pessoas do seu entorno articulando ações golpistas, uma dessas pessoas inclusive sugere ter relações de amizade com o senhor.
Essa questão do ex-major Ailton é ridícula. Por que a amizade com o Ailton? Porque é paraquedista. Duas vezes por ano tinha encontro de paraquedistas e ele estava lá. Se você conversar com ele, em trinta segundos já não quer mais conversa. Ele mandou um áudio para alguém dizendo que mobilizaria 1 500 homens para um golpe, coisa assim.
O Ailton não mobiliza meia dúzia de jogadores de dominó. Se conversar com ele, vai ver isso. É um coitado. Ele queria que eu gravasse um vídeo para ele na campanha do ano passado. Respondi: “Ailton, você é meu irmão, você é meu 02, porque o 01 é o Hélio Negão”. Aí levaram para o lado de que ele é o meu 01 no Rio de Janeiro
Mas o ex-major trocou mensagens golpistas com um coronel que estava lotado na Casa Civil. Isso revela que o entorno do presidente no mínimo flertava com essa possibilidade, não?
Desde que assumi, sou acusado de tentar dar um golpe. O que eu fiz desde o começo, e arranjei inimizade por causa disso, foi repetir que “nós temos que jogar dentro das quatro linhas”. Muitos diziam que “os caras lá estão fora das quatro linhas”. Em muitos casos, estavam mesmo.
E quais seriam as consequências de se tomar uma medida de força? Como ficaria o Brasil perante o mundo?
O país iria acabar, virar uma Venezuela mais rápido do que o PT conseguiria com a desgraça econômica que se está pintando no horizonte.
Então tinha mesmo gente no entorno do senhor que acreditava na hipótese de golpe?
Se tem alguém, ao meu conhecimento não chegou. Falavam em tom de desabafo. Quando teve o caso do Ramagem (Alexandre Ramagem na indicação para a direção da Polícia Federal), por exemplo, em que o STF impediu a posse dele, alguns, mais nervosos, diziam: “Pô, tem que peitar, fazer isso”.
Quem defendia uma medida mais dura?
Ninguém defendia, era desabafo de alguns, fora do gabinete. Eles estavam revoltados com essa situação de interferências no Executivo. Eu recebia em média uma ação por semana do Supremo Tribunal Federal. Mas isso foi antes das eleições. Essa perseguição que o senhor alega seria promovida pelo STF ou por algum ministro em particular? Não quero polemizar nessa área. Está acontecendo uma conscientização no Brasil e não é só em relação ao meu caso. Eu não quero botar lenha na fogueira. Tem gente de várias formações criticando o que está acontecendo. Não precisa ser muito inteligente para saber de onde vem o problema.
O senhor tem receio de ser preso?
Não há motivos para isso. Mas é bom não esquecer o que aconteceu na Bolívia. A ex-presidente Jeanine Áñez assumiu quando o Evo Morales fugiu para a Argentina. Depois, o outro lado voltou ao poder, ela foi presa e condenada a dez anos de cadeia. Acusação: atos antidemocráticos. Não preciso explicar mais.
Está sugerindo que algo similar pode acontecer no Brasil?
Para ter algum motivo que justificasse isso, eu precisaria ter feito pelo menos 10% do que ele fez. E eu fiz 0%. Algumas pessoas importantes não vão dizer os nomes.
Fonte: VEJA